quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Laura Loura



A parte mais sexual do corpo de uma mulher é o nome. Pelo desejo, algumas se reduzem a apenas isso. Ela. Sussurrada entre sonhos. A língua toca suave entre as vogais. Repete-se, com pequenas variações, até o orgasmo. Deveria haver normas rígidas sobre a escolha de nomes para o sexo feminino. Nunca seria capaz de amar uma mulher sem a letra ele. Lúcia, Helena, Lorena, Paula, Leonora, Clarice. Jamais Ana Maria.
Propus-me a contar. Minha mente profundamente libidinosa exige a história de uma mulher linda e trágica. Tentei-me com Lolitas seqüestradas, mas meu lápis não desliza em folhas gastas. Busquei perfumes e enredei-me no ouro de louros cachos. Achei. Laura. Apaixonei-me pelo erre gratuito. Perdi-me no olhar dos dois as verdes. O da esquerda me pisca de leve e quase se fecha. Laura, Laura, Laura. Esqueço-me nas pronúncias até que e o som já não sai de minha boca. Sou apenas papel beijado pelo grafite.
Laura sou eu.

* * *

Nasci antes que a cidade na qual. Altos de montanha friozinho neblina. Ás vezes eu era. Certa vez me fui. Nem pai nem mãe nem avô, que beijei de má vontade e já não. Tenho a pele muito branca e nunca havia visto oceano. O Sol me espiava o tornozelo como se eu fosse mais que um poema. Mas Copacabana. Escondi meus sonhos em lençóis alugados. Pus cordas em meu pescoço. Acordei. Ardia. A Música. Amei.

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Laura L., cantora e compositora, nasceu em agosto de 1980 em uma pequena cidade serrana do estado do Rio de Janeiro. Aos dezessete anos de idade deixou a casa de seus pais para viver na Cidade Maravilhosa, onde começou a trabalhar como camareira, a cursar a faculdade de Comunicação Social e a apresentar-se em bares e casas noturnas. Entre suas composições mais apreciadas pelo público estão: “O meu nome é esse”, “Meu amor distante” e “Tua voz”. Faleceu no último domingo, aos 26 anos, em decorrência de ferimentos sofridos no incêndio criminoso do ônibus em que viajava para sua cidade natal.

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Quando olhei aquilo. Foi ai que. Foi naquela coisa que enxerguei. Ela. E não era. Lágrimas correndo até meus lábios. O pretume não me enganou. Aquele pretume tão preto que parecia o preto do carvão preto. Porque era. Mas ainda queimava alguma brasa branca. Por algum tempo. A Laura era loura como a cerveja que a gente tomava. E eu adorava a doçura da cabeleira dourada. Mas Laura era amarga, mesmo na cara branca feito espuma. E a espuma se desfaz uma hora. A brasa apaga. Tudo finda. Laura loura, que queria ser preta, acabou sendo só cinzas.

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A primeira vez que a vi. Laura. Loura, ali na Lapa, cantando ao lado do lixo. Achei linda. E aquela voz. Na voz eu via meu vazio. Mas ela me enchia, me achava, me inchava o ego quando me elogiava. Eu explodia com seu canto. Mas quando ela gozava, eu não gostava do grito. Saiu de minha casa, e ainda morou na gaveta da escrivaninha, onde eu lia e relia, e ela era só minha. Até que.


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E se ela ler a notícia? Vai continuar a vida, tudo igual, fingir que não é com ela? Ou se vinga, olho por olho, me mata, joga no lixo, me usa pra limpar merda de bicho? Laura loura queria ser preta, mas eu a deixei marrom. Na imprensa. E ela nem pensa em me procurar.

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Tragédia Carioca: ex-namorado chifrado põe fogo em ônibus e mata cantora. Há testemunhas, mas eu matei todas. Não. Eu sou todas. Eu sou Laura. Sou linda. Sou o filho da puta do ex-namorado. Podem me prender. Não. Tenho direitos. Não à noite. Tenho o direito de botar fogo nesse apartamento. Eu quero ser preta, mais preta que aquela voz linda. Quero ser negra igual ao carvão. Quero o amarelo do fogo nos meus cabelos. Quero ser rubro-negro. Branco azedo.
Mas Laura, a essa altura, deve trabalhar em um Cassino em Nevada e nunca saberá como morremos.

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Só eu que vi. E só vejo o que quero. Madrugada. Só eu naquele lugarzinho. Ouvindo o grito. O cabelo preto ficou amarelo igual ao dela. Da Laura. Só que cheirava mal. Mas chorei de emoção assim mesmo. Ninguém vai querer saber de nada. Ninguém acredita em acidentes. Só eu que vi. E todo mundo só vai ver o que eu quero. E preto não tem nome.

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Sou só papel beijado pelo grafite. Rasgo negro aderindo ao branco. Eu morava dentro daquela gaveta. Ás vezes abria pra me olhar de perto. E via que era ela. Até que. Assisti a gente queimando na lixeira do escritório. O amarelo brilhante ao redor do nosso abraço retorcido e apertado. O branco beijado pelo lábio vermelho. Até que não havia limite entre a letra e a pele.
Foi ai que. Foi naquela coisa que enxerguei. A Laura jogada no chão. No papel sujo. Pisada, usada pra limpar, embrulhar, queimar. Habitando os becos e as piores bocas. Só assim posso salvá-la. Libertá-la. Só se eu queimar nossos corpos no povo.

* * *

Laura, Laura, Laura. Repete-se, com pequenas variações, até o desespero. Nunca amaria uma mulher sem a letra ele. Ele sou eu.

* * *

Acabei indo. Nem disse. Só pra ele. Contei da partida no pedaço de papel. Adivinhei dúvidas. Então, diz que morri. Cresci antes que a cidade na qual. Renasci antes que ela morresse. Cantando ao lado do lixo. O olhar fixo no rapaz assustado. Sempre esqueço depois de lembrar que.
Dia desses li nossa morte. Ele cumpriu. Li e calei. E sorri. Nem pai, nem mãe, nem avô, nem ex-namorado. Nem polícia. E a notícia distante, feito o fogo brilhante, escureceu minha pele. Arde. Arte em minhas veias. Sereia que sou. Só canto. E o corpo impossível. Aqui não sou mais que um poema. Invisível. Nunca quis ser loura, nem Laura. Nem preta. Não sobraram cordas. Nada mais me ata. Só ele é que era nós.

Um comentário:

luciana disse...

E Luciana? Tem Ele. E Ele também sou eu. Loura ou Preta.
Bjs, Lu
P.S.: Adorei seu poema no blogue do antônio Cícero.