domingo, 21 de outubro de 2007

Corrida

Eu não tava preparado pra aquilo. Acho que ninguém estaria. Talvez algumas pessoas pudessem até encarar com certa naturalidade uma coisa daquelas. Mas não alguém como eu.

Minha vida sempre foi simples, ou melhor, sempre foi complicada, mas com complicações previsíveis, rotineiras. Em outras palavras, uma vida simples. Vez por outra o pneu do carro furava, ou algum moleque arranhava a lataria. Já havia sido assaltado duas vezes, número até pequeno na minha profissão. Às vezes brigava com minha esposa, mas sempre voltávamos. Às vezes eu jogava na loteria. Não ganhava nunca.

Era basicamente isso, vida simples. Isso e vagar de carro pela noite, pelas ruas da Zona Sul, esperando um casal de jovens na porta do cinema, ou uma senhora idosa que voltasse da visita aos netos. Às vezes um filhinho de papai cheio de uísque. Uma vez uma loira linda tinha dado sinal. Passei a corrida observando o decote pelo retrovisor. Bati. Foi uma merda. Às vezes quando chegava em casa de madrugada, exausto, ainda tinha disposição para fazer amor com a Carla. Esse tipo de coisa acontecia, vida simples, mas nada como o que aconteceu naquela noite.

Esqueci de falar de uma coisa que acontecia muito, principalmente em Janeiro. Chuva. Muita. Era uma merda maior do que bater por causa de decote de loira linda. Não dava pra andar. Quando começava cedo eu nem saía de casa. Sem corrida. Mas quando ela tava meio fraca eu arriscava, afinal, tinha aluguel pra pagar. Aí eu caia na armadilha, ficava preso no trânsito do Jardim Botânico ou alagado em Botafogo. Não ganhava uma corrida. Naquela noite maldita também estava chovendo, mas a corrida apareceu.

Passei em frente a um lugar desses, que a juventude gosta de freqüentar, onde eles bebem demais pra dirigir e tem medo demais pra andar a pé, onde as corridas são curtas e eu posso voltar rapidinho e pegar mais uma leva de adolescente chato. O problema é quando vomitam. Aí tem que mandar lavar, pagar caro, merda. Sempre discuto quando eles vomitam, fico estressado, a pressão sobe. É uma merda, é pior do que quando chove. Deixa pra lá! Naquela noite ninguém vomitou no meu banco.

A corrida foi de um cara alinhado, todo bem vestido, terno preto. Meio coroa, lá pelos cinqüenta. Sei lá. O importante é que o cara não era um adolescente filho de papai, nem o pai de um deles. Ou talvez fosse, tanto faz. O que é mesmo importante é que eu percebi exatamente o que ele era no momento em que o vi. Não me pergunte como um cara como eu pode reconhecer algo assim. Vai ver eu não sabia. O que eu estou dizendo? Eu sabia, só não quis aceitar o fato. Era só uma corrida, ia acabar rápido. Eu fiquei olhando o sujeito pelo retrovisor, mas ele não tinha decote, nem peitos bonitos que me fizessem salivar, só tinha aquele olhar sinistro, os cabelos grisalhos e um sorrisinho escroto.

Naquela época ainda não tinha esses rádios que avisam a gente das corridas. Se tivesse rádio era capaz de eu conseguir me distrair e levar numa boa. Talvez. Talvez tenha gente que consiga encarar esse tipo de coisa com naturalidade, mas eu fiquei ali, com um olho na pista e outro no sorrisinho, andando de vagar, no meio da chuva.

- Boa noite.
- Boa noite.
- Pra onde?
- Você sabe.

Continuei guiando. Foi aí que o cara resolveu abrir o paletó e tirou um maço de cigarros do bolso. É uma merda quando alguém fuma no carro. Fica o cheiro. Eu sempre fico nervoso quando alguém insiste em fumar no carro. Paro. A pressão sobe. Uma merda. Mas naquela noite eu não falei nada. Eu sabia o que ele era e não queria me meter, só queria acabar a corrida numa boa, pegar meu dinheiro e ir pra casa.

Às vezes penso que eu devia ter falado alguma coisa, parado o carro, deixado a pressão subir. Mas um cara como eu não sabe o que fazer numa situação dessas. O que você faria no meu lugar? É uma merda, mas sei lá. Acho que eu tinha que seguir em frente, acelerar e terminar a corrida. É o que eu sempre faço.

E fiz. Fui dirigindo no meio da água, desanimado com a chuva, nervoso com o sorrisinho e sem querer acreditar no que era aquele cara. Mas acreditando assim mesmo. Eu só queria fingir que não sabia. Minha vida era simples, e eu nunca soube muita coisa. Então segui até ficar parado no trânsito, como sempre acontecia quando chovia. Quem dera ter uma loira gostosa exibindo os seios e os lábios carnudos no banco de trás. Ah! Eu ficaria horas parado na chuva. Delirando. Mas só tinha fumaça pra respirar, e o sorrisinho pra ver. Tentei me distrair com a cruz pendurada no retrovisor, ela balançava pra lá e pra cá. Ainda a mantinha lá, mas não acreditava mais. Não acreditava, mas sabia o que era, sempre soube. Não deu pra distrair grande coisa.

- Vira ali.
- Mas ali não tem saída.
- Vira.
- Tá.

Virei, não queria discutir. Às vezes acho que não devia ter virado. Sei lá, podia ter falado forte. Mas aí a pressão ia subir, eu ia ficar estressado. Ia ser uma merda. E eu não queria discutir. Eu sabia o que ele era. Um cara como eu não sabe como lidar com isso, entende?

Pegamos um atalho e fomos parar no túnel. Atravessei tossindo com a fumaça e vendo o sorrisinho que brilhava no meio da escuridão. Eu sempre atravessava o túnel. Sempre ficava meio nervoso com aquele negócio fechado e escuro. Às vezes eu dava uma volta passando pelo Centro só pra não passar por túnel. Era uma merda. Mas aquela noite eu peguei o túnel e não fiquei nervoso com isso.

Cheguei em casa de madrugada. Ainda tava com disposição pra trepar com a Carla. Às vezes acontecia. Subi e fui pro quarto. O cara do sorrisinho ficou gargalhando enquanto eu fodia bem gostoso aquela vagabunda. Eu sabia o que ele era, sempre soube, e nele eu não deixei de acreditar. Depois que eu me fartei, foi a vez dele. Ele foi na cozinha e pegou uma faca de churrasco. Foi uma merda.

Hoje eu tenho uma vida simples outra vez. Ou melhor, complicada, mas com complicações previsíveis, rotineiras. Ou seja, vida simples. Às vezes os camaradas aqui fazem uma bagunça e queimam uns colchões. Às vezes reclamo, e sempre me arrependo. Às vezes tento sair, mas nunca consigo. É isso, uma vida simples. Isso e me arrastar à noite entre os corpos prensados dos meus colegas de cubículo, ouvindo gargalhadas e vendo o sorrisinho escroto em cada rosto semi-adormecido. Uma vez, veio uma loira linda visitar um colega, e eu fiquei olhando aquele decote. Levei um soco, foi uma merda. Às vezes, enquanto espero minha vez de dormir, de madrugada, ainda sinto saudade de fazer amor com a Carla. Essas coisas acontecem, vida simples. Mas nada como naquela noite.

Um comentário:

Cláudio B. Carlos disse...

Opa!
Passando por aqui...
Gostei.
Abraços do *CC*